sexta-feira, 24 de setembro de 2010

bússola

és tão linda,
perfume,
vivos olhos,
sinfonia.
travessia,
sorriso de ninfa,
e o corpo a levitar
meus temores,
campo de sonhos,
de quase mulher.

de quase tempestade -
benvinda póstuma calmaria
de caravelas
no fundo do mar.

és tão linda
sereia, dorso de alfazema.
teus olhos, farol na bruma,
e eu a me afogar sempre ...
na esperança de atracadouro,
teu corpo longínquo
a me chicotear
de sal e espuma...
na noite que avança
sem lua ...
somente teus olhos,
farol,
no rumo norte da saudade.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Silencio-Madredeus

vulcão instinto

os cadarços estão soltos, há muito,mas muito tempo. as engrenagens se perdem no incêndio da família, rescaldo de fotogramas. a amplidão da dúvida é um mistério de olhos abertos: fazer-se dúvida. sê-la sem saber ao certo, nunca, qualquer compasso de evolução. atirar-se do penhasco de anos: dúvida. desatar o cerco, ampliar a ferida, no limiar do invisível e do indivisível. dinamitar a camisa-de-força do pouso seguro, da ilha, sólida, na beatitude subterrânea dos náufragos.
os cadarços estão soltos: a felicidade sorri com dentes postiços, e saliva, e se regozija. o gozo silencioso da dúvida, apalpada no escuro da infância - onde estão os cães pequineses e os vagalumes da infância ? - os cadarços estão soltos, quis que assim fosse. na tetania das lembranças, fecho os olhos e sigo.

domingo, 19 de setembro de 2010

bolero barato

seus olhos ainda me olham
na fotografia
seu cheiro ainda me deixa
na mesma agonia

mas não é a mesma paisagem
que juntos pintamos
nos perdemos de passagem
no vendaval destes anos

ai de mim que ainda te vejo
juntando os meus pedaços
na frente do espelho

ai de mim que ainda te sinto
marcando o compasso
nos meus pulsos vermelhos

seus olhos ainda tão longe
me olham
a luz do meu dia passou
mas esses olhos não choram

e é tão triste a paisagem
é tão triste esta inútil alegria
continuo buscando você
nos restos da fotografia

(junho/1993)

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Philip Glass - The Photographer

ofício

na ponta dos dedos,
olhos adestrados,
lapidando o belo
com o frio diamante
de ebúrneas constelações.

Ursa Maior

Palatina Menor

Andrômeda

a polpa está morta
e não há suspeitos.
nem quem possa
ter roubado o sorriso
sob o bigode de Nietsche.

frugal esta engenharia:
sangue, ouro, marfim,
mistério de saliva e sonho.

o olho adestrado
na quase perfeição,
o caminho traçado,
no amálgama calcado
di-a-ri-a-men-te.

este figo maduro

este figo maduro
enche minha boca
de espanto

enquanto
nossos ramos
se enroscam
dois pares de flores
faíscam

o sumo

a seiva

o suor

inquietação da semente
mistério da carne
- a sinfonia no pulso
de quem vai explodir -

este figo maduro
enche minha boca
de perfume
- e na cabeça
um cardume
de vastas sensações -

quase haikai

bêbada
a boléia titubeia
beliscando a brisa
feito co   bri
            li

sábado, 11 de setembro de 2010

herbertiana

lanço dentro da noite
os ponteiros do relógio
atados aos teus tornozelos

teus braços, velozes,
em leque, ângulos febris
da distância
entre duas fugas,
sopram a brasa matriz
em que consome a noite

preparo tua carne
com o sal e as especiarias
da terra entre minhas pernas

- tormenta de corpos ancorados
em sonho de seda e marfim -

de dentro da noite dentro
o grito animal
me faz contar estrelas
no céu da tua boca

e, ainda, nossas lágrimas misturadas,
dentro, dentro, dentro,
são apenas a distância entre duas fugas

gênesis

no princípio,
sonho.
ossos, veias
e cadafalso.

depois
o céu se apagou,
e a luz, num gemido,
fez história.

e depois, e depois,
e depois,
a extrema-unção
calma
e em silêncio.

o peito aberto
de mil dias
não cicatrizou.

e restou
apenas a presença
da ausência.

e o que era instante
marcou
o tempo difuso
das lembranças.

translúcida,
a memória,
passagens oníricas
do mais puro desespero.

e do peito,
ainda aberto,
os pássaros engaiolados
vigiavam a liberdade.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

arqueologia

estertora a noite
(e o dente dói)
indefinidamente.

a câmara violada
de algum sacerdote,
noites de eterna maldição.

estertora a noite
(e o dente dói)
compulsivamente.

traumas de infância,
cantos, quinas, esconderijos,
nada será como antes.

em seus estertores
de noite plena,
fiel depositário
de todas as dores,
o homem contempla
a lua serena
de mil temores,
fria e trágica,
analgésica,
como estas lágrimas,
estrelas de sofrimento.

ideológica

dedilhando os muros
como ossos duros
de roer

tateando no escuro
um furo
na tese do poder

onde estão meus cabelos?
melhor não tê-los
esquecer

minha coleção de sê-los
taparam os bueiros
do amanhecer

i fall in love too easily (para Chet Baker)

aveludada,
a nota na noite
morta.
e tão doce.
os dentes na ponta dos dedos,
no escuro da alma.

aveludado blue:
podres pulmões
cuspindo vida,
nas curvas do trompete.

katharina

de asas recolhidas, um anjo
espreita o rio em silêncio.
meninas em flor, girassóis,
pequenas pedras preciosas,
auscultando chuva e sonho.

pedindo mais, mais e mais,
demais dizer felicidade.

o rio perfumado
como um sorriso de criança,
com uma lembrança terna
sob as asas recolhidas de um anjo.
(fevereiro/1990)

narciso

a flecha impotente
cai sob teus pés, como a última lágrima
deste regato.

e o sangue da ferida acesa
copula
com os alevinos moribundos.

sob o silêncio das pedras,
sob o musgo
pulsa uma cicatriz.

e de sua raiz
germina a comunhão da seca:
árida trilha humana,
que só faz queimar os brotos.

- nem flores, nem memórias -

corroendo o sol tua imagem,
térmitas em raios,
das almas e dos pulmões
cospem seus estragos.

da impotência da flecha
jaz espelho partido,
como o canto dos olhos,
regato seco da beleza humana.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

coito

espasmos de lava doce
em busca do sentido
e da gruta fresca
de pirilampos em fúria.

-serpente,

errante-

se esvai no tempo
de coléricas e latejantes dores
na fleugmática sinfonia
do pulso e seus temores.

queima no peito
lascinante como um pôr do sol
a angústia seca do fardo:

- da luta -

brasa silenciosa,
nos olhos,
simetria das unhas
treliçadas,
esfacelando a carne,
viva e sedutora
como um figo maduro.

síncope de tendões,
dicionários todos
num gemido,
exército de pelos,
verões,
bigorna silenciosa
de vastas sensações.

Carolina

neblina que espreita
o silêncio de outono

das folhas pretéritas
do novo
a vigiar a esperança

concebida flor
que sabe do seu fruto
o veludo de pêssegos
o orvalho doce
a refletir sonho
na quietude das manhãs frias

vem se juntar
aos andantes da esperança

a semear coragem
a colher na árida realidade
um sorriso de primavera
um sorriso de criança.
(22/05/1996)

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

a primeira morte (ou a paixão segundo Herberto Helder)

cal
despida de qualquer paisagem,
velando corpos
com a obscuridade
de bocas abotoadas,
no silêncio seminal dos casulos.

línguas
e unhas trêmulas
a romper a casca.

-quase libélulas-

mamilos já conhecidos,
nos corredores
da casa tomada,
no grande canyon
de grandes lábios furiosos.

a primeira morte,
espáduas aveludadas, quase cicatrizes.
o tempo acelerado,
diafragmático,
longínquo esquecimento
a tatear,
uma pausa de orquestra,
um cheiro de chuva,
uma chama de vela.

a primeira morte
suplanta corredores,
descansa em lençóis sujos,
em carpetes,
na tarde silenciosa
que conspira,
com todas as rugas do casario.

a primeira morte
rompe o ventre
de dunas, de anjos,
demônios de origami.
teu umbigo
é o centro da vertigem adolescente.

a primeira morte é definitiva.

-teu sexo
se avizinha,
espectro de enciclopédias-

mas o real
dos homens,
do casario,
das sentinelas,
fervem a mínima entranha do desconsolo,
interdita destinos de precipícios.

é tempo de guardar os livros
de feroz noite,
recolhendo arpões,
tangendo estrelas.

a primeira morte...

ócio do ofício

as mãos sabem o caminho,
as retinas especulam sonhos...
além dos muros da fortaleza
florescem margaridas e inquietações.

o rosto afaga o espinho
a boca se perde na noite,
e o destino
é apenas um remédio sem bula.

em cascatas, o brilho
da manhã fria
invade a cotidiana idade.
nas veias, talvez felicidade,
a incógnita da vida.

o sorriso,
nos tropeços da memória,
enfim uma saída.
o sorriso:
talvez a ilusão mais colorida.
(dez/1999)

exodôntica

a boca em escombros
mendiga e silente,
algoz de infames restos
de civilização.
principia destruição:
tecidos edematosos,
vulgares,
como um sorriso sem dentes.

agonia secular
no aço da ponta de uma lança,
mergulha
e volta à superfície,
brilhante e imediata
como um corte sem itinerário.

a boca em escombros
atravessa meus olhos
com o gemido de mil silêncios...
o sangue gelatinoso
de tantos caminhos
repousa acorrentado num alvéolo.

domingo, 5 de setembro de 2010

madrugada

luz que se vai,
retinas que se cansam,
a memória consola.

amor fora de hora,
dias que nos dedos dançam,
o corpo se esvai...

o sol vai romper como um beijo
e o dia é só uma criatura
que ainda não tem nome.

infância

mães
aos olhos do sol
com as saias entre as pernas
catando piolhos

espremendo
o frescor das lêndeas
nas unhas secas

translúcidas
como a retina da vizinha
que morreu ontem

a água no balde
lambe
o limo do poço

perscruto os esgotos
e na bateia
pregos enferrujados
cacos de vidro
- cicatrizes de infância

sábado, 4 de setembro de 2010

"transforma-se o amador na coisa amada" (*)

e no horizonte largo da ferida
voa sem destino,
agonizante, como o tempo silencioso das ampulhetas.
mergulha na dor subterrânea dos mendigos,
se engalfinha na maré das palafitas.
a inquietação
da taquicardia dos seus dias
desafia a luz dos edifícios:
instantânea como a lágrima,
mortal como um sorriso.

e lúcido
o amador se conforma
na busca da coisa amada.
sofre com a embarcação
na borrasca dos pensamentos.
ainda se entrega
à última fibra que vibra
último tendão que liga
o corpo à razão.

quixotesco lança olhos de vidro,
entregando-se ao prazer
de não ser nada
além da alvorada
e do amanhecer
angustiado
constrói um cômodo a cada dia,
mas onde mora
é sempre mais cotidiano e apertado.

assim, onírico parte
sem bagagem,
sem endereço como a tempestade:
álibi para seus crimes,
refúgio para suas faltas.
e no estampido seco da memória
- trégua -
incauto segue,
imprevisível como um cadarço solto,
farejando...
o aroma doce dos olhos humanos,
o calor vulcânico das palavras.

(*) estudo sobre soneto de Camões