segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

BEBO DO TEU VINHO II

O vinho desperta o mais profundo sentimento. Não por acaso, talvez seja a bebida mais revestida de simbolismo em contato com o ser humano. Desnecessário alinhavar sua história ao longo dos séculos. Antes mesmo da uva o vinho já nasce com a intenção! Em qualquer canto do planeta, alguém se dispõe a cultivar o seu sonho de uva. Não sei quem primeiro a transformou na bebida que conhecemos hoje. Talvez a epifania do primeiro gole, do aroma, da embriaguez, tenha elevado o homem à categoria do sagrado. O fato é que o vinho existe, de diversas origens, de diversas formas de se fazer, de se consumir e ser consumado, de se embriagar. Não vou falar de simbolismo. A imensa simbologia cabe a cada um que o degusta. Mas falamos de castas, de climas, de ocasiões, de aroma de frutas,  e de sentimento. O mesmo sentimento que eleva o ser humano à categoria dos iniciados. O vinho, se corretamente apreciado, eleva a alma do bebedor à categoria de amador, no sentido amoroso da palavra! Estilhaça os sentidos e nos faz elevar o espírito, aguça os sentidos, como quem aponta um lápis, ou tira a roupa de uma mulher, ou de um homem. Mas há que perceber sua alma e seu encanto. O vinho pede um ritual. Outro dia, na praia, vi uma senhora pedir um copo de vinho. Num quiosque. Um copo americano até a boca, com vários cubos de gelo! Não, não é desse vinho que estou falando. Falamos do clima e da imensidão de sentidos, por trás deste simples ato de cheirá-lo, olhá-lo e degustá-lo. Deus me livre e a quem me escuta, desta verborragia, mas é necessária. Quer detestar tomar vinho? Vá ao supermercado, namore os vários rótulos, escolha um, coloque no carrinho e siga. Chacoalhando no carrinho, chacoalhando no porta-malas. Finalmente chegue em casa, abra-o e tome. Vai ser desprazeroso. Todo o processo, desde a intenção do homem em cultivar a sua uva, até o fundo do copo, cairão por terra, feito um meteoro desgovernado. Não, não é assim! É o mesmo que paquerar alguém, sequestrá-la, enfiá-la no porta-malas, chegar em casa e sonhar que vai fazer amor com ela de maneira inesquecível. Não. O vinho merece apreciação, namoro, identidade, descanso, longe da luz e do calor. Beber do bom vinho é fazer amor com quem você mais ama, lenta e sem pressa. Soletrando cada letra na cartilha dos bons amadores.

profissão de fé

bebo de teu vinho, e é tarde. e é imensa a tarde que flutua sob nossos corpos: cadafalsos, precipícios, cais de porto. do teu vinho decanto especiarias, trêmulas notas florais, sedutores frutos maduros. teu vinho, frasco esquecido nalgum escaninho, maldição cíclica dos amantes sem endereço: cegueira, analgesia, vertigem. e o espelho é só um relógio sem ponteiros. bebendo do teu vinho. grudados feito cães de rua. tarde rubra como o fundo de nossas almas misturadas. bebo toda a colheita sem pressa. a tarde levedando beijos e choques elétricos. bebo de teu vinho...
olhos de pólvora seca.
dentes a emoldurar tragédias.
desabrochando em frestas, 
rastros de tijolo,
o visgo de caracóis, por entre as pernas,
os assobios,
as panelas chiando...

orvalhando...
o vinho branco do desejo,
no canto da boca,
nas axilas ,
no umbigo assustado.
sereias não tem virilha,
canto de gozo
e espanto.


a mudez
da roupa e dos corpos
quarando
nos varais da sala.
o sismo,
a fenda exposta,
gotejando...
frêmito de infinitos lábios.

pele em quintais,
brotando violetas e porquês.
o lapso aromático dos cadáveres.

o fastio
da madrugada
de pernilongos e estrelas...

os corpos dilatados,
- barcos  nos rochedos -
untados de beijos e obséquios,
esparramados,
pradarias e formigueiros,
patchwork de estilhaços humanos