quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

inventário II

lembranças -
esvaziando bolsos,
bolsas,
escaninhos -
redemoinhos ...

lembranças -
trôpegas,
respirando
com a ajuda
de aparelhos -
de estiagem,
de espinho ...

lembrança -
glacial,
estopim
sem centelha -
paralisada
numa folha seca
e vermelha.

domingo, 23 de janeiro de 2011

os animais carnívoros (fragmento) Herberto Helder/1968

Havia uma cidade em espanto linear a cavalo noutra cidade em geometria ambígua, um jardim era metade de outro, em que as pétalas andavam para trás e para diante, com o perfume trocado e o silêncio das cores tremendo no seu erro cheio de alvoroço florido, e os arquitectos disseram: é preciso um novo espaço para estas duas pessoas que estão a pensar tanto com o corpo - e numa casa abria-se a porta que vigiava os corredores onde o pólen se acendia e dançava, e de repente a porta descerrava o espectáculo antigo do nascimento da lua num quarto escuro, e via-se o que a lua sempre fez para trepar do soalho para o tecto pelas paredes docemente retardadas, era o tempo da seda entre os nossos vinte dedos embrulhados, e alguém escrevia à máquina num dos planos da intersecção urbana, e a frase escrita aparecia com o seu rumor externo noutro sítio, mas agora via-se no meio dela uma clareira de silêncio vivo, e ia-se aprendendo a nossa mútua nudez colocada no sentido da frase, nós éramos essa cidade tremendamente posta em uso, em toda a parte estavam mãos em vez de garfos e lâmpadas, e a frase era assim: o amor, as mãos ininterruptas.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

mergulho em teus olhos

mergulho em seus olhos,
como se última fosse a paisagem
pálpebras coreográficas
desmontados
em suor e lágrimas,
apontando o caminho da luz
e do sonho.

mergulho em teus olhos,
como se última fosse a mulher,
astrolábios,
língua a circular mamilos
rota de vergões a desenhar
tragédias
em minhas costas.

mergulho em teus olhos,
na tua fúria
de procura inominada,
que arrebenta nas pedras,
na praia,
no silêncio...

no silêncio gostoso do silêncio.

domingo, 2 de janeiro de 2011

ressaca

trôpego,
junto nossos pedaços
sob móveis,
garrafas vazias,
espantadas peças de roupa.

catalogo
cheiros,
beijos, gemidos,
todas sorte
de álibis
e de sentidos.
"onde é que nós estamos que não reconhecemos nem os desconhecidos" (Paulo Leminski)